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Um legado visual da Rua da Quitanda (século XIX ao XXI)

A Rua da Quitanda, localizada no coração do Centro do Rio de Janeiro, sempre foi um polo de atividade comercial, cultural e artística. Desde o século XIX, fotógrafos renomados escolheram essa região para estabelecer seus estúdios ou capturar imagens que se tornaram ícones da história carioca. Este artigo traça um panorama histórico desses profissionais e sua relação com a região, destacando nomes que moldaram a memória visual da cidade.

Século XIX: O nascimento da fotografia no Brasil

No Brasil Imperial, a fotografia chegou em 1840, apenas um ano após sua invenção. A Rua da Quitanda, próxima ao Paço Imperial e à movimentada Rua do Ouvidor, tornou-se um local estratégico para estúdios fotográficos, que atendiam à elite e a viajantes estrangeiros.

  1. Marc Ferrez (1843–1923)
    Embora seu estúdio principal estivesse na Rua São José, Ferrez, o mais célebre fotógrafo do século XIX no Brasil, registrou o Centro do Rio em detalhes. Suas imagens da Rua da Quitanda mostram o comércio vibrante e a arquitetura colonial, além de eventos como a abolição da escravidão (1888), que impactaram a região. Suas imagens glorificaram o "progresso" de uma nação construída sobre a exploração de milhões de africanos e seus descendentes, ao mesmo tempo em que silenciavam suas vozes. 
  2. Insley Pacheco (1830–1912)
    Português radicado no Rio, Pacheco teve estúdio na Rua da Quitanda nos anos 1860. Suas fotos de tipos urbanos e retratos da aristocracia são testemunhos da vida cotidiana no período.
  3. Joaquim Insley Pacheco & Outros Estúdios
    A região abrigou estúdios como Photographia Central e Casa Imperial, que usavam a técnica do carte-de-visite, popularizando retratos acessíveis para a classe média emergente.

Primeira metade do século XX: Modernização e documentação social

Com a República e a modernização da cidade, a fotografia migrou para registros urbanos e sociais. A Rua da Quitanda continuou relevante, embora concorresse com áreas como a Cinelândia.

  1. Augusto Malta (1864–1957)
    Fotógrafo oficial da prefeitura, Malta documentou a transformação do Centro nas reformas de Pereira Passos (1903–1906). Suas imagens da Rua da Quitanda capturam o comércio tradicional e a convivência entre antigos casarões e novos edifícios.
  2. Hugo Leonardos (1899–1981)
    Ativo nos anos 1930–1950, Leonardos registrou o cotidiano do Centro em preto e branco, incluindo feiras e a atmosfera boêmia da Rua da Quitanda, então cercada por bares e tipografias.
  3. Jean Manzon (1915–1990)
    Fotógrafo francês radicado no Rio, Manzon retratou a vida noturna dos anos 1940–1950 para revistas como O Cruzeiro. Seu trabalho incluiu cenas de bares e personagens da Quitanda.

Segunda metade do século XX: Entre o declínio e a resistência

Nas décadas de 1960 a 1980, o Centro entrou em declínio econômico, mas permaneceu como espaço de resistência cultural.

  1. José Medeiros (1921–1990)
    Fotógrafo da revista O Cruzeiro, Medeiros explorou temas sociais. Na Quitanda, registrou trabalhadores informais e a decadência de prédios históricos.
  2. Walter Firmo (1937–)
    Com olhar humanista, Firmo fotografou a diversidade racial e cultural do Centro nos anos 1970, incluindo a Rua da Quitanda como símbolo de um Rio em transição.
  3. Militão Augusto de Azevedo (1837–1905)
    Embora do século XIX, seu acervo de "fotos comparativas" (Rio Antigo vs. Rio Moderno) influenciou gerações posteriores a revisitarem a Quitanda.

Século XXI: Redescoberta e arte contemporânea

A revitalização do Centro a partir dos anos 2000 trouxe novos olhares para a região:

  1. Maurício Hora (1973–)
    Fotógrafo da comunidade da Providência, Hora documentou a relação entre o morro e o asfalto, incluindo a Rua da Quitanda como espaço de trabalho para camelôs e artistas de rua.
  2. Coletivos Fotográficos
    Grupos como Lente Cultural e Imagens do Povo realizaram oficinas e exposições no Centro, usando a fotografia para discutir memória e gentrificação.
  3. Luiz Baltar (1963–)
    Autor do livro Rio: Centro em Obras (2015), Baltar registrou a transformação da Quitanda durante os preparativos para as Olimpíadas de 2016.

A Rua da Quitanda como palimpsesto visual

Ao longo de dois séculos, a Rua da Quitanda serviu como espelho das mudanças do Rio:

  • Século XIX: Espaço de elite, com estúdios sofisticados.
  • Século XX: Centro de comércio popular e vida noturna.
  • Século XXI: Símbolo de resistência e renovação urbana.

Fotógrafos como Ferrez, Malta e Firmo nos legaram não apenas imagens, mas um diálogo entre passado e presente, essencial para entender a identidade carioca.

Fontes sugeridas para aprofundamento:

  • Acervo Instituto Moreira Salles (Marc Ferrez e Augusto Malta).
  • Livro Rio de Janeiro: Uma História Social das Lentes (Milton Guran).
  • Exposições no Centro Cultural Correios e CCBB-Rio.

Este artigo é um convite a caminhar pela Rua da Quitanda com os olhos dos fotógrafos que a imortalizaram — cada clique, um fragmento da alma do Rio.

Fontes gerais para contexto histórico

  1. Instituto Moreira Salles (IMS)
    • Acervo digital com obras de Marc Ferrez, Augusto Malta e José Medeiros: ims.com.br
    • Catálogo Marc Ferrez: Obras-Primas (organizado por Sergio Burgi).
  2. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
    • Fotografias de Augusto Malta sobre as reformas urbanas: portal.rio.br
  3. Biblioteca Nacional Digital (Brasil)